O prÃncipe do gueto e a segregação social
Dizer que a Bahia é o baluarte da música brasileira é, no mínimo, um clichê de honra e respeito às tradições afros. Mas afirmar que o carnaval de Salvador é um tributo à democracia chega a ser uma desonra ao povo baiano, tão estigmatizado pelas ações institucionais de um Estado que delimita o espaço público e recria a cada ano a gourmertização da folia, uma segregação movida pela ânsia de vender abadas e lugares privilegiados nos camarotes da capital baiana, repletos de celebridades que sustentam a lógica da ostentação e da exclusão social. Nos trinta anos de comemoração do axé music, surgem controvérsias de um artista polêmico, com um discurso politizado e sem papas na língua. Trata-se do príncipe do gueto Igor Kannário que incomodou o reinado de artistas consagrados nacionalmente. Um artista marginalizado que saiu da condição de detento e passou a ser um ídolo graças às letras de suas canções que reafirmam a força da favela
Conheço o carnaval soteropolitano desde 1988 e confesso que fiquei um pouco intimidado com as músicas desse príncipe que traz a favela tatuada no peito. A favela é seu lugar de origem, onde são ampliadas as vozes de um povo sem voz e sem lugar na folia institucionalizada e patrocinada por recursos públicos. O hit É Tudo Nosso, Nada Deles incomoda tanto a elite quanto os intelectuais de gabinete porque provoca uma discussão que aponta as mazelas dos lugares mais subterrâneos da Bahia: as periferias carentes de atenção e de políticas públicas específicas. Em apenas uma frase, o cantor e compositor Igor Kannário indica princípios filosóficos que foram abordados de Rousseau a Karl Marx. Quando a periferia dança ao som de É Tudo Nosso, Nada Deles, ela escancara a origem das desigualdades sociais entre os homens e enfatiza a interminável luta de classe que muitos tentam negar, camuflar ou disfarçar descaradamente. É inegável ainda que as letras de Kannário carregam uma dose de violência e de uma revolta visceral. Mas o que esperar da voz do gueto, tão oprimido e violentado, tão massacrado historicamente por uma elite branca, patriarcal e escravocrata? Não encontramos flores onde há desespero e segregação. Violência gera violência mesmo. As musicas de Kannário representam a violência cotidiana de pessoas que são desprovidas de direitos essenciais para o pleno exercício da cidadania.
Os legalistas de plantão falam em apologia ao crime, no consumo de drogas ilícitas como se esses fatores fossem atributos restritos às periferias. Mas se esquecem, ora por conivência ou moralismo, que o crime neste País começa de cima pra baixo. A criminalidade brasileira mais perversa tem seus sustentáculos no primeiro escalão. Brigamos e nos matamos por migalhas enquanto são desviados bilhões de recursos que deveriam ser investidos em saúde e educação. No Brasil, a propriedade privada tem mais valor que a vida humana. Basta relembramos o índice assustador de assassinatos de jovens negros nas favelas brasileiras, o massacre de Carajás desencadeado pela luta contra o latifúndio, a matança no Carandiru e muitos outros casos que sujam de sangue a história recente da nação.
Nossas maiores expressões culturais, da música à gastronomia, são oriundas das regiões periféricas. A feijoada, o samba e o funk carioca foram recriados em ambientes marginalizados pela classe dominante. Nossas favelas representam as senzalas contemporâneas e preservam o ressentimento histórico que necessita ser transformado em arte. Fora a onda politicamente correta que assola em solo brasileiro, é necessário relembrar que nossos grandes artistas não foram exemplo para ninguém. Necessitamos de menos discursos e mais ações politizadas que sejam capazes de tocar o dedo nessa ferida ardida. É necessário ampliar e aprofundar as questões relacionadas à segregação social e à marginalização do negro em nossa sociedade. Que as letras de Kannário sirvam de instrumento para essa reflexão, sem puritanismo ou qualquer tipo de hipocrisia ideológica. Antes de criticar as classes menos privilegiadas, é essencial analisar as estruturas de poder que aniquilam os direitos civis e a equidade de oportunidades entre os cidadãos. O gueto merece respeito!
O autor Éverlan Stutz é jornalista